Meu sonho não é o teu sonho…

 

Passeando pelo centro comercial de Santos encontrei uma Tamancaria e, estranhando o

anúncio indicativo, perguntei se a loja, realmente, tinha tamancos para vender. O dono do

estabelecimento estava no balcão, atendeu-me e contou que não produzia mais esse artigo.

Muito simpático, disse que quando não havia controle ambiental e existia procura pelo

produto com forte demanda, abriu uma fábrica de tamancos que foi desativada no final dos

anos 70. Em função das dificuldades, descontinuou as relações comerciais da cadeia produtiva

do tamanco, mas acumulou capital suficiente para constituir um sólido estabelecimento

comercial de venda de sapatos.

A prosa continuou e derivou para o futuro da loja. O proprietário comentou que os filhos

seguiriam uma profissão liberal, e não dariam continuidade ao projeto que ele empreendeu

com tanto esforço e talento. No entanto, compreendia com muita tranquilidade que o sonho

dele, de ser proprietário de um comércio, não era o sonho de seus descendentes.

Nesses casos, o caminho frequente dos estabelecimentos é fechar as portas. Com menos

frequência, é possível vender para outro empresário que irá dar continuidade à empresa,

eventualmente com outro formato e nome comercial.

No entanto, para que um empreendimento possa ser vendido é necessário que seja avaliado

por critérios objetivos, que revelem de maneira transparente a sua saúde financeira. Os

indicadores de higidez financeira devem transmitir confiança e segurança para o comprador.

A análise deve revelar o volume e a estrutura dos ativos da empresa, explorando aspectos que

a valorizem e os que a fazem valer menos. Na perspectiva do comprador, é importante ter

acesso a essas informações, para que consiga calcular com alguma precisão o retorno do

capital aplicado na aquisição.

O método clássico utiliza fluxo de caixa líquido da empresa, descontado o valor presente por

uma taxa de juros que represente a remuneração do capital do comprador. Nesta avaliação, é

necessário também conhecer o mercado onde atua a empresa e o potencial do setor. A

perspectiva do futuro é fator crítico para acelerar a compra.

A visão do futuro do comprador está ligada à taxa de juros que ele escolherá para o desconto

dos fluxos de caixa. Portanto, não se trata apenas de precificar os ativos da empresa, a sua

inserção na cadeia produtiva (isso é, as relações de fornecedores e clientes) que se

estabeleceu no passado, mas também de verificar a expectativa em relação ao futuro.

Nesse sentido, o ambiente de negócios e sua perspectiva para o futuro são extremamente

relevantes para a determinação da taxa de desconto. Em ambiente econômico como o atual,

com inflação alta e incertezas em relação à continuidade do funcionamento dos mercados, a

taxa de descontos eleva-se brutalmente.

Outro aspecto é a continuidade da existência dos mercados. No caso citado acima, podemos

inferir que os consumidores continuarão a usar calçados nos pés, no entanto, os tamancos são

tão obsoletos como estribos nos carros. O esforço do proprietário de redirecionar seu

estabelecimento comercial é vital para fazer crescer o capital que ele aplicou em seu

empreendimento.

Para o vendedor é importante, durante a sua gestão, cuidar dos aspectos financeiros citados

acima.  Caso não ocorra uma sucessão familiar exitosa é necessário ter um plano “B”, que

permita ao proprietário da empresa cristalizar o esforço de uma vida inteira de trabalho no

retorno do capital que ele aplicou, acrescido de todo esforço que fez para estabilizar e crescer.

O proprietário deve se conscientizar que o capital, que receberá pela venda do seu negócio,

retornará para ele de maneira ampliada somente se cultivar com rigor as virtudes de uma boa

gestão, associada à estrutura financeira com baixo endividamento. Caso contrário, fechará as

portas de seu estabelecimento juntamente com seus sonhos.

 

Prof. Dr. Renaldo A. Gonsalves, vice coordenador do departamento de Ciências

Atuariais da PUC/SP.